Abrindo 2013 com uma indicação de filme imperdível, e não apenas para os fãs de Quentin Tarantino. Leiam a crítica de Luiz Zanin do Estado de S. Paulo.
Django Livre
A História é
uma matéria-prima plástica nas mãos de Tarantino. Ela a deforma, segundo sua
percepção, de modo a colocá-la nos limites de sua visão de mundo. Quer dizer,
ele a interpreta. Foi assim com o nazismo e a 2ª Guerra em Bastados Inglórios,
é assim com a escravidão em Django Livre.
Mesclando o
western spaghetti de Sergio Corbucci com o mito nórdico de Sigfried e
Brünhilde, Tarantino conta essa bela história do escravo liberto, Django (Jamie
Foxx), que, em companhia de um caçador de recompensas, King Schultz (Christoph
Waltz), vai resgatar a sua esposa na fazenda de algodão de um proprietário diabolicamente
maldoso, Calvin Candie (Leonardo DiCaprio).
Nessa
reinterpretação ficcional sobre o horror da escravidão, Tarantino busca ao nó
da questão, ao mostrar que quando um homem é transformado em objeto, ele será
alvo de todos os piores instintos sádicos do seu “proprietário”. Calvin
representa a síntese dessa perversão da posse, num belo trabalho de DiCaprio.
Mas, claro,
o liquidificador pop de Tarantino evita que Django Livre seja um mero filme de
denúncia. É verdade que ele vai ao paroxismo para deixar bem claro o que era a
escravidão, sem qualquer disfarce. Os negros são tratados pelo pejorativo
“nigger”, pronunciados pelos brancos o tempo todo, o que causou mal-estar na
politicamente correta sociedade norte-americana. Acontece que era desse jeito
mesmo que os senhores se referiam aos negros. Com a mesma falta de, digamos,
pudor, Tarantino escancara as formas de tortura usadas à guisa de “reeducação”
de faltosos. E, pior de tudo (na verdade, melhor), expõe a conivência de alguns
negros na opressão do seu próprio povo. Esta é a função do personagem Stephen,
criação brilhante de Samuel L. Jackson.
Sobre esse
substrato de dolorosa verdade, Tarantino constrói a sua ficção, à maneira de
uma ópera. Transforma essa saga sobre a escravidão, anterior à Guerra Civil, em
uma grande e deliciosa aventura cênica. Primeiro, porque o rendimento dos
atores é máximo, a começar por este notável Christoph Waltz, num papel
desenhado especialmente para ele. Depois, porque filma com tal paixão que
impregna a obra de um, digamos assim, “desejo de cinema”, muito raro de se
encontrar hoje em dia.
Quer dizer,
exibe toda uma sabedoria de cineasta sobre o ritmo, os cortes, as cores, os
movimentos de câmera, os sons, a música. Enfim, o conjunto de qualidades
formais a que chamamos de direção, e faz de Django Livre um prazer para olhos e
ouvidos. (Daí a injustiça maior de Tarantino não ser indicado ao Oscar na
categoria de melhor diretor).
Esse desejo
que Tarantino coloca ao filmar, ele o transfere ao espectador. Trata-se de um
prazer de cinéfilo, produto de milhares de filmes vistos, e executado na velha
técnica da película em 35 mm. Mesmo que Tarantino recaia em eventuais exageros,
como os inevitáveis banhos de sangue, o todo é tão envolvente que perdoamos de
pronto esses pequenos pecados. Eles fazem parte do estilo Tarantino de ser.
Luiz Zanin - 18/01/2013 - http://blogs.estadao.com.br/luiz-zanin/django-livre/